Partindo de um conceito de cidadania activa, que deve contar com a participação de todos e que inclui o questionamento de uma ordem estabelecida que não é justa nem democrática, Maria de Lourdes Pintasilgo aponta para a necessidade de mudança social e de instauração de uma sociedade nova, baseada em valores éticos e verdadeiramente democráticos. Em seu entender, a democracia que vivemos, mais formal do que substantiva, assentando mais em procedimentos e regras instituídas do que em princípios e valores, não é uma democracia verdadeira.
Nesta perspectiva assume relevo a reflexão sobre o papel das mulheres e a sua contribuição, enquanto cidadãs, para o objectivo da mudança, particularmente através do acesso e participação na vida política, ou seja a gestão da polis, que é expressão simbólica privilegiada do exercício da cidadania.
Em textos que vão desde inícios da década de 70 até finais da década de 90 do século XX, esta ideia vai-se aprofundando e enriquecendo numa multiplicidade de aspectos e dimensões, de modo bem típico do pensamento de Maria de Lourdes Pintasilgo.
Logo em 1972, num discurso que faz perante o ECOSOC , é pioneira a sua reflexão sobre o papel das mulheres, acentuando, por um lado, a invisibilidade social daquelas, incompatível com as funções instrumentais que desempenham na comunidade e, por outro, a nova consciência das mulheres que desponta e que será força de mudança para toda a sociedade.
O momento do 25 de Abril e a movimentação social que se lhe segue parecem constituir alavanca poderosa no desenvolver deste pensamento. A “Carta Aberta às Mulheres de Abril”, um artigo não publicado, é testemunho forte de uma visão radical sobre a acção transformadora que as mulheres podem exercer. Evoca a sua experiência política, «uma mulher no seio de um universo masculino», e aparentemente regressada dessa «viagem ao mundo dos homens» contesta a organização desse mundo e os valores que o regem, ao mesmo tempo que evoca as vidas difíceis das mulheres e aspira à mudança que pode surgir de uma força colectiva daquelas que «querem e sonham com uma pátria nova».
Momento histórico, momento de charneira, em que há dois caminhos, o primeiro que é o da continuação do rumo da ordem social estabelecida, se bem que em novos moldes introduzidos pelo regime democrático, e o segundo que é o desafio da verdadeira revolução para a construção de uma sociedade estruturalmente nova, em que o questionamento do papel das mulheres leva ao questionamento da própria organização social. O título feliz do artigo “Partisanes ou suivantes ou les femmes dans le processus révolutionnaire portugais” expressa bem essa dicotomia que é simultaneamente «uma constatação e um desafio».
Esta é uma linha de pensamento que se vai aprofundar na relação que estabelece entre a emergência do feminino e a democratização da política, uma temática que vai sendo trabalhada em diversas perspectivas. Um texto não datado, mas que deve situar-se no final dos anos 90 ou início da década seguinte, formula-a claramente como “Emergence du féminin et démocratisation du politique” e, olhando o mesmo desafio de fundo, aponta as diversas fases de evolução deste processo e os obstáculos que se lhe opõem.
Trata-se de uma emergência do feminino que, permitindo às mulheres o exercício pleno da sua cidadania, em última análise implicará o seu acesso à decisão, em condições de igualdade com os homens. Uma igualdade que não é só quantitativa, mas que se traduzirá numa alteração qualitativa da própria vida democrática. Por isso se trata de uma «igualdade inédita e subversiva», que não se traduz na «integração unilateral das mulheres no mundo dos homens»; se for apenas essa a igualdade procurada ou alcançada, ela virá antes a criar uma nova forma de desigualdade. A igualdade a prosseguir inclui a aceitação da diferença, não da desigualdade, sendo que a diferença é mesmo uma dimensão valorativa da cidadania e da genuína democracia. Ela inclui, por outro lado, uma mudança de paradigma no domínio mais fundamental das relações humanas, o da relação homem-mulher, quer ao nível das relações pessoais, quer ainda ao nível das respectivas funções na vida social.
Nesta óptica, a experiência histórica milenar das mulheres, com tudo o que resulta da sua identidade própria, poderá ser uma mais valia para a democracia e torná-la mais viva e coerente. Para isso há que renovar as formas do seu funcionamento e não seguir modelos esgotados em si mesmos que já não dão resposta aos problemas e necessidades das pessoas. Há problemas novos que têm que ser vistos à luz das novas realidades do nosso tempo e das questões emergentes que as condicionam: a globalização e a interdependência, as movimentações e os desequilíbrios a nível mundial, a pobreza e a dependência de vastos sectores do planeta, a emergência do ambiente como novo actor social…Questões estas e outras a que o jogo político tradicional, em que apenas intervém uma minoria e que afasta a grande maioria de cidadãos e cidadãs, não dá resposta, provocando antes o descrédito e a descrença.
O exercício de uma nova cidadania das mulheres, um processo em construção na sua luta pela igualdade e pela participação, poderá trazer novas dimensões à solução dos problemas do mundo, pelo próprio carácter multifacetado que caracteriza essa cidadania e que resulta da própria natureza da identidade e experiência femininas. Por outro lado, na visão de Maria de Lourdes Pintasilgo, será também uma cidadania que se baseia na importância do sujeito, na dignidade da pessoa e num novo contrato social numa comunidade de homens e mulheres igualmente livres.
Para a autora, a cidade é o lugar em que o ser humano, a pessoa, emerge como sujeito de direitos, não apenas os direitos civis e políticos, valorizados numa visão tradicional da democracia, mas também os direitos económicos, sociais e culturais, e mesmo os chamados novos direitos, que devem ser igualmente valorizados numa visão de verdadeira democracia. Seguindo esta linha de pensamento ressalta em vários textos a estreita convergência entre a emergência do feminino e o questionamento da política tradicional.
A plena cidadania feminina trará novos rostos para o poder e transformará o próprio poder na sua natureza mais intrínseca. Como refere designadamente no texto “Femmes et Hommes au Pouvoir”, conferência pronunciada em Paris em 1999, ela proporcionará a passagem de um “poder sobre” para um “poder com” e de um “poder contra” para um “poder para”. Será uma oportunidade para as mulheres de humanizar o poder, de mudar a sua natureza, combinando «uma racionalidade técnica e operacional sem falhas com um cuidado do outro, sem compromisso nem demissão».
Assim, para Maria de Lourdes Pintasilgo não parece haver qualquer dúvida que as características próprias da identidade feminina trarão uma nova dimensão à democracia. Um texto fundamental, não obstante o seu carácter inacabado - “Cidadania feminina e sociedade activa” - explora esta perspectiva e acentua o carácter existencial da cidadania das mulheres, a que chama «cidadania múltipla», dada a sua proximidade e interacção com todas as esferas essenciais da vida. Encontrar «novas palavras e novos métodos» é o conselho que vai buscar a Virgínia Woolf para o exercício desta cidadania que, em seu entender, é imperativa e urgente.
É, aliás, muito interessante verificar como, mesmo quando o entusiasmo reflectido nos textos iniciais, especialmente ligados com a revolução de Abril, se vai esbatendo e dando lugar até a alguma decepção pelos objectivos não cumpridos, a chama permanece. A plena cidadania das mulheres é um objectivo essencial da democracia. Por isso, Maria de Lourdes Pintasilgo defende e promove o conceito de democracia paritária que considera portador de esperança e anunciador de futuro.
O texto “La démocratie paritaire” que escreve para uma publicação do Conselho da Europa, instância onde teve papel de relevo no desenvolvimento do conceito, é um texto emblemático do seu pensamento.
Para ela, a democracia verdadeira implica o colocar da pessoa no centro, como sujeito e objecto da acção política, acima dos mecanismos do mercado ou quaisquer outros. Mais do que regras ou procedimentos, por necessários que sejam, democracia é um «vasto sistema de valores e um modo de pensar que o grande princípio director deve ser o pleno respeito da dignidade do ser humano, que assim pode usufruir totalmente da sua cidadania».
Nesta visão, a igualdade que a democracia paritária exige é a igualdade perfeita, não apenas na lei e nas normas, mas na vida toda; por isso regista no mesmo texto que «a estratégia da paridade permitirá às mulheres o usufruto pleno da sua cidadania», sendo assim a democracia paritária uma dimensão essencial da democracia verdadeira, tão importante como o primado da lei ou a separação de poderes ou outros princípios tradicionalmente considerados.
Constituído por textos de natureza diferente, nacionais e internacionais, textos trabalhados e publicados e outros em estado de elaboração menos acabada, este acervo permite um olhar sobre a riqueza de pensamento de Maria de Lourdes Pintasilgo em relação ao tema Mulheres e Cidadania.