Mudar o curso da história pela vontade comum de cidadãos, cidadãs e países autónomos, sujeitos criadores e inventores da sua própria felicidade é o projecto de criação da vida futura plasmado nos textos apresentados neste dossier. São textos produzidos por Maria de Lourdes Pintasilgo, entre 1970 e 2001, nos quais reflecte acerca das vicissitudes e perversões dos modelos e estratégias globais para o desenvolvimento, acerca da exclusão e invisibilidade sistemáticas das mulheres nesses processos, e onde vai desenhando um novo paradigma capaz, esse sim, de alcançar a verdadeira qualidade de vida.
O conceito de qualidade de vida é proposto por Maria de Lourdes Pintasilgo para substituir as sempre ambíguas formulações do conceito de desenvolvimento, cuja gradual “humanização” considera ser meramente retórica.
Qualidade de vida tomada como meta medida objectiva mas também avaliada subjectivamente; que toma como referenciais imperativos os instrumentos jurídicos internacionais, pelo reconhecimento dos direitos cívicos, políticos, sociais, económicos e culturais; que quer que toda a população ultrapasse o nível da mera sobrevivência; e que articula factores económicos, sociais, culturais e ambientais. Assim concebida a qualidade de vida traduzir-se-á em direitos objectivos e universais, mas também na satisfação de condições subjectivas e diversificadas, articulando “o mundo” e “a minha aldeia” numa nova maneira de olhar para a sociedade.
Face ao logro do conceito e modelos de desenvolvimento impostos pelos mais ricos sobre os mais pobres, e à recorrente redução do desenvolvimento a “crescimento económico”, o projecto de Maria de Lourdes Pintasilgo é o de transformar o mundo pela acção criativa, pela multiplicidade de iniciativas e definição dos problemas por aqueles e aquelas que directamente os sentem e vivem – os cidadãos e as cidadãs, sujeitos plurais do processo de desenvolvimento.
Por isso, recusa o que chama as «acções aspirina» e as «soluções globais» que nos metem «nos coletes de força dos constrangimentos externos». Abre caminho ao desenvolvimento como acção libertadora - acção crítica radical ao capitalismo liberal, autoeducação em oposição à educação “domesticadora”, primado do político e do social sobre o técnico e o económico. Um desenvolvimento capaz de estabelecer uma nova ordem económica internacional, baseada na solidariedade e cooperação entre as pessoas e entre os povos. É um desenvolvimento polifónico, participativo. Contra o predomínio do planeamento centralista, excludente, homogeneizante opõe a participação, a criatividade, a iniciativa e a invenção das pessoas, vistas como a energia vital do novo paradigma de acção libertadora para a qualidade de vida, tão bem traduzida na parábola do «rei bom» …
É esse o paradoxo de uma estratégia mundial para o desenvolvimento – por estar fechada à partida, traçada a partir de cima, pelos “competentes” e “benévolos”, com fito num destino universal, unificado por objectivos económicos, metas e metodologias, esquece-se dos indivíduos e divorcia-se do social, do cultural e do político. Produz o “vazio onde crescem monstros”, revelado tão cruamente no 11 de Setembro, ao qual tem de suceder um projecto global de sociedade, desenhado também pelas mulheres, para escaparmos ao caminho de destruição trilhado com a globalização.
A nova liderança e criação colectiva de uma nova política deverá basear-se na ética da responsabilidade e do cuidar, para a qual é fundamental o contributo das mulheres, capazes de gerar e produzir vida. As mulheres têm de passar de meros objectos (de leis, de protecção, de mercados, de publicidade), de excluídas e invisíveis, por uma “ideologia industrialista”, a sujeitos de decisão, de auto-definição, de crítica e avaliação. A “experiência multiforme das mulheres” é o contributo vital para a “nova era” – era de limites, interdependência, interdisciplinaridade, intersectorialidade – na qual, para o “nexo da sobrevivência” confluem ambiente, desenvolvimento, pobreza, consumo, população, tecnologia, nas suas múltiplas dimensões políticas, económicas e geo-estratégicas.
As mulheres são as “fazedoras do mundo” – geram, alimentam e cuidam o mundo. Nos momentos de crise elas são capazes de encontrar soluções, porque nelas reside uma força escondida, potencial. É sua a contribuição política para uma história com dimensão humana e social: «as mulheres podem contribuir para fazer passar o que ainda resta da ordem da força [era da Guerra Fria], o que está a emergir cada vez mais como a ordem do dinheiro, àquilo que eu chamaria a ordem da vida» .
As mulheres, a partir da sua experiência particular, são capazes de traçar novos objectivos e prioridades sustentáveis para toda a humanidade. São elas quem sacia as necessidades essenciais e fundamentais dos seres humanos, tanto materiais como espirituais (até aqui sem tradução imediata no plano monetário), e são elas também quem melhor conhece os recursos da natureza e de cada região. Usando na política e na sociedade as suas próprias vozes, e não mimetizando as vozes e acções dos homens, um dia elas serão as definidoras de nova interacção entre as necessidades essenciais e o controlo dos recursos (não-renováveis), de novos modelos de actividades produtivas, de novos papéis das pessoas e das instituições – «nesse dia atingir-se-á a auto-suficiência local e colectiva.
Para Portugal, Maria de Lourdes Pintasilgo defendeu também a necessidade de invenção autónoma de um destino não rendido ao modelo único. Desde «a proposta de alterações e inovações governativas à luz das recomendações das Nações Unidas e das experiências de outros países, nos anos 70 (criação da Comissão da Condição Feminina, alterações no Direito da Família, etc.) , passando pelos votos de vencida dos Planos de Fomento (rejeição da lógica da competição como mola propulsora do arranque desenvolvimentista do pais e da adopção mimética do padrão da Europa desenvolvida como modelo a seguir), até ao enunciar das prioridades nacionais decorrentes do novo paradigma da qualidade de vida , Maria de Lourdes Pintasilgo defendeu para o país a inovação e criatividade de soluções baseadas, não na tecnologia, que no entanto não menosprezava, mas na “responsabilidade pelo bem de todos”, que ainda hoje não conseguimos vislumbrar.
Em síntese, destacaríamos como marcas do seu pensamento o carácter global que atribui às transformações sociais conducentes à melhoria da qualidade de vida, nas suas múltiplas dimensões, e a subsequente rejeição dos modelos tecnocráticos de desenvolvimento económico.
A adopção de uma abordagem de empowerment, não enquanto resultado da mera repartição no acesso a recursos, mas antes entendido como uma capacitação para a negociação do possível nas cidades futuras, marca também todo o pensamento de Maria de Lourdes Pintasilgo. A tomada de consciência crítica das desigualdades e o desenvolvimento de capacidades colectivas para reivindicar e lutar pelo que é considerado justo constituem, consequentemente, elementos fundamentais da sua perspectiva. Por fim, atravessa todos estes textos e, diríamos, a maior parte da sua obra escrita conhecida, a noção de que as mulheres, enquanto principais sujeitos do cuidar, têm um papel especial e único na construção participada de um devir melhor.