A leitura dos textos de Maria de Lourdes Pintasilgo sobre a sua concepção de direitos sociais e reprodutivos constitui uma oportunidade de perceber o pensamento de uma figura profundamente implicada na defesa dos direitos humanos, entendidos como extensíveis a todas e todos.
Maria de Lourdes Pintasilgo não opõe os direitos sociais aos direitos reprodutivos, pensa-os como um todo consistente, acentuando a importância da auto-determinação das mulheres como sujeitos dos direitos, em particular dos reprodutivos: «Nenhuma ciência, nenhuma tecnologia, nenhuma politica de Estado, nenhum programa de uma agência de desenvolvimento pode substituir o seu direito e a capacidade de decidir sobre o seu próprio destino.». Sobretudo, é de referir, que não se trata de uma contradição entre as suas posições politicas e as suas convicções religiosas, como Pintasilgo clarifica: trata-se de um entendimento de que, em primeiro lugar, a fé e a politica se colocam em planos diferentes e de que o plano secular e o plano da religião devem estar separados. Assim, Pintasilgo encontra na legislação que criminaliza a interrupção voluntária da gravidez uma porta aberta para o aborto clandestino, pondo em causa a igualdade e a dignidade das mulheres perante a Lei.
Estas preocupações não se cingiram a Portugal, como mostram as suas participações na Conferência do Cairo (1993) sobre População e Desenvolvimento, evidenciando a importância destas questões para um pensamento global sobre a inter-relação complexa entre direitos reprodutivos, população e desenvolvimento sustentado. Pintasilgo preocupou-se com o modo como a pobreza se associa com o excesso de população, que acentua a escassez de recursos, o que por sua vez fará aumentar a pobreza. Esta concepção holística e integrada liga-se directamente às suas preocupações com os direitos humanos, que não entende numa perspectiva abstracta e individualista.
Para Pintasilgo, é preciso alargar a Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948) em termos dos direitos dos povos e dos direitos de grupos sociais, numa luta efectiva contra a opressão, a exploração de uns povos sobre os outros e contra as múltiplas discriminações. Em termos das suas propostas de novos direitos sociais incluem-se: o direito a um ambiente equilibrado, o direito a uma vida urbana saudável e o direito a um ambiente cultural. Tratam-se de modalidades de direitos, que atestam uma preocupação sua com os múltiplos ambientes em que o desenvolvimento humano se processa, traduzindo uma preocupação com estes ecossistemas do desenvolvimento, que passam a integrar a concepção de direitos sociais.
Esta concepção integra os direitos reprodutivos enquanto direitos humanos inalienáveis, tais como os direitos sociais, económicos e culturais que, para Pintasilgo, têm o valor dos direitos humanos individuais. Esta concepção crítica das propostas anteriores que ligavam os direitos humanos apenas ao indivíduo, propõe uma re-leitura da pessoa enquanto membro de instituições, grupos e comunidades. Nessa linha de pensamento, os direitos humanos deveriam também integrar essas relações sociais.
É de referir, o modo como as medidas politicas de Maria de Lourdes Pintasilgo estão imbuídas desta nova maneira de pensar os direitos, traduzindo as suas preocupações em acções concretas. Veja-se, por exemplo, o modo como a inovação das suas propostas se verifica na aplicação das medidas de acção positiva, como é patente nas Notas Introdutórias à Regulamentação do Trabalho Feminino de 1973, introduzindo políticas que visam corrigir temporariamente o desfavorecimento em que as mulheres se encontravam, dada a sua situação social.
O pensamento de Pintasilgo evidencia uma forte convicção no modo como a democracia viria necessariamente trazer a igualdade entre os sexos, encarando os direitos humanos das mulheres como parte fundamental da democratização e desenvolvimento da sociedade portuguesa que, como esclarece, se tratam de duas faces da mesma moeda.
Para Pintasilgo, «os direitos ditos universais aplicavam-se unicamente ao homem de raça branca, de sexo masculino, na pujança da vida adulta, possuidor de condições económicas que lhe permitiam ter o pão e a saúde, o trabalho e a educação». Esta crítica a respeito dos sujeitos dos direitos refere-se à importância de contemplar a universalização dos direitos humanos a cada vez mais indivíduos, integrando mais sujeitos desses mesmos direitos, que é consagrada na Conferência Mundial dos Direitos Humanos em Viena (1993), com a afirmação dos direitos das mulheres como direitos humanos. Este passo permite uma aplicação efectiva dos direitos a outros humanos, que não apenas os homens, brancos, adultos economicamente favorecidos. E para Pintasilgo, essa universalidade dos direitos humanos só é efectivamente atingida, quando é dirigida a indivíduos, membros de grupos e de comunidades.
A sua proposta de reformulação da concepção de direitos humanos inclui uma dimensão de responsabilização. Deste ponto de vista é necessário complementar a Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948) com a integração de deveres, concretizando assim a dimensão da responsabilidade. Esta declaração de deveres é legitimada, pela autora, num quadro de pensamento que privilegia o “cuidado” sobre uma concepção individualista dos direitos humanos, salvaguardando a importância das relações sociais entre indivíduos. Assim, a solidariedade seria um dos principais deveres no quadro deste novo paradigma de pensamento sobre os direitos.
Maria de Lourdes Pintasilgo privilegia pois, nas suas concepções de direitos humanos (nos quais salienta os direitos sociais e reprodutivos), uma ética de cuidado, integradora de direitos e de deveres, para fomentar o desenvolvimento humano, nos múltiplos sistemas onde este processa.